5 de julho de 1901- Cortejo náutico de receção a D. Carlos
3 de junho de 1902 – aprovação do estatuto por alvará
A fundação do Clube Naval de Ponta Delgada não se confina ao ano da aprovação dos seus estatutos, mas alarga‑se a um vasto movimento associativo que marcou, nos Açores, o final do século XIX, onde por virtude do comércio da exportação de laranja se estabeleceram, nessa época, contactos com terras estrangeiras que fortemente influenciaram os homens de espírito novo e empreendedor, os quais vieram a revolucionar a Ilha de S. Miguel, nos mais diversos sectores, constituindo a chamada “grande geração”.
Por outro lado, não é alheio o facto do movimento liberal ter criado nesta ilha uma extraordinária animação sociocultural, de que resultou um verdadeiro empenhamento por todos os problemas ligados à cultura nas suas múltiplas formas, bem como quanto à instrução e à educação, com especial relevância para tudo o que se prendeu com os primórdios dos movimentos “da livre administração dos Açores pelos Açorianos”.
Outra razão de peso foi o facto de Ponta Delgada ser uma cidade voltada ao mar, desde sempre com um apreciado movimento de barcos na sua baía, o que entusiasmou também muitas pessoas, nomeadamente jovens, para a prática de desportos náuticos.
Assim, já em 30 de Setembro de 1861, o Jornal “Açoriano Oriental”, a propósito da inauguração dos trabalhos da construção do porto de Ponta Delgada (e depois de descrever o ambiento festivo da doca com veleiros a outros barcos de cabotagem), acrescentava que «em volta da pequena Baía de S. Francisco e suas imediações mais de 60 escaleres, jeques e barcos que giravam nas vizinhanças do areal e dentro da bacia encontravam‑se ornados de verdura matizada de flores de diversas qualidades».
Ainda como acontecimento digno de registo, salienta‑se o facto da chegada a Ponta Delgada, em 18 de Maio de 1895, de Francisco Moniz Barreto Corte Real, provindo de Angra do Heroísmo, num barco a remos, feito de papel de jornais chamado “Autonomia”, o que veio decerto insuflar novo entusiasmo à constituição deste Clube.
O arrojado navegador gastou 30 horas de viagem, num barco que media 3 metros de comprimento e 1 de largura e foi conduzido num carro dos Bombeiros Voluntários, corporação que generosamente o acolhera.
Custódio José Borges, segundo o “Diário dos Açores” compôs um hino dedicado ao herói terceirense.
Em 1931 o Comodoro Alfredo da Câmara, sócio fundador do Clube Naval, afirmava em entrevista publicada no Jornal “A Gazeta”, «que a regata realizada no nosso porto fora em 16 de Julho de 1898, sendo promovida pela Associação dos Bombeiros Voluntários de Ponta Delgada».
Foram também as primeiras festas náuticas que podem considerar‑se como prelúdio da fundação do Clube Naval.
«Quando a gente pega no Estatuto do Clube Naval pode incorrer num erro, porque o alvará é datado de 1902, mas a fundação foi em 1901, por um grupo de pessoas que tinham já embarcações suas. Ainda está na memória de muita gente o veleiro chamado “Trinta Diabos”, do Sr. Alfredo da Câmara, um homem excepcional; a “Flecha”, que eu conheci ainda, do Engº Abel Coutinho, construída em madeira de teca; a “Lila” de José Pedro Ribeiro e a “Andorinha” dos irmãos António e José Joaquim de Arruda; a “Anphytrite” de José Matias Tavares; a canoa “Vila Franca”; a canoa do União Micaelense; e, mais tarde, o barco a remos chamado “Maria Lomelino”, cedido pelo Visconde do Porto Formoso aos dois valorosos remadores António de Medeiros Frazão Júnior e António Franco Taveira.»
Armando Rocha
Recuando no tempo, já em Maio a Junho de 1899 o Jornal “Açoriano Oriental”, informava que «ia começar a época balnear pelo que era conveniente aos banhistas tomarem medidas de precaução, nomeadamente não proceder a nenhum exercício violento que obrigasse a transpirar, mas sim de um repouso absoluto, em virtude do qual as funções se retardam».
E sobre o ambiente que rodeava a doca acentuava‑se que «os navios de pequeno curso que no ano findo entravam em Ponta Delgada procedentes das outras ilhas e que segundo o costume não eram visitados pela Estação de Saúde, abrangiam 927».
Como se depreende já então o porto de Ponta Delgada constituía um lugar privilegiado para tal tipo de competição, emoldurando a cidade com uma nota de acentuado colorido.
«Jacinto Botelho Âmbar é um dos sócios fundadores, era médico e tinha o seu consultório na Rua António José d’Almeida, por cima da antiga Sapataria Atlas. Afonso Gomes de Menezes Ferreira era pai do Engº Luís Gomes. Abel Frias Coutinho era o Engº Abel Frias Coutinho, da Junta Autónoma, um dos pais do Clube. José Pedro Ribeiro era um senhor muito bem relacionado, era o técnico de radiografias abaixo do Coliseu. António Joaquim de Arruda, este não conheci. Alfredo da Câmara, o sócio fundador, a alma do Clube. António Amorim da Cunha, é o avô ou bisavô do médico Luís Cunha. Júlio Pereira de Carvalho, nunca conheci este senhor.»
Aurélio César
Na verdade e no dizer dos antigos «a chave de todo o progresso da ilha» foi sem dúvida a construção do porto artificial de Ponta Delgada, concluído em 1944, sob um projecto de ampliação do Eng.º Abel Férin Coutinho, grande amigo deste Clube e introdutor de algumas das suas principais actividades desportivas.
E foi desde sempre que, aproveitando‑se a sua magnífica baía e as estruturas que a envolvem, que se têm desenrolado os mais importantes festivais náuticos realizados pelo Clube Naval, bem como decorrido agradáveis momentos de convívio entre os sócios e amigos que nos visitam.
Em 1895 começou a funcionar em Ponta Delgada a Escola de Pilotagem Corte Real, de habilitação àquela carreira da Marinha Mercante, regida por oficiais da marinha de guerra, em exercício na Capitania do Porto, situação que decerto veio influenciar também a prática de desportos náuticos, bem como a existência dum grupo de técnicos capazes de apoiarem as várias modalidades ligadas ao mar.
Todos esses factos, acima sumariamente transcritos, promoveram a constituição dum grande movimento associativo, com vista à fundação dum Clube Náutico, mais propriamente a partir de 1900.
Assim, em 12 de Junho de 1901 uma comissão organizadora constituída por Jacinto Botelho Âmbar, Afonso Gomes de Menezes Ferreira, Abel Frias Coutinho, José Pedro Ribeiro, Alfredo da Câmara, António Joaquim de Arruda, António Amorim da Cunha e o Dr. Júlio Pereira de Carvalho concretiza os respectivos estatutos, «cujos objectivos eram promover e fomentar as diversões náuticas em todos os seus ramos e manifestações».
Estávamos, então, praticamente, já sobre os alvores do século XX e os jornais da época assinalam amplamente essa transição na qual, como referem os analistas, «o trabalho aumentara e se ramificara; o industrialismo afirmara‑se e os Açores, já com comunicações relativamente fáceis com os movimentos produzidos lá fora, viam reflectir essa nova era, através duma educação literária, científica e cultural, bem como em manifestações variadas onde o civismo e a caridade altruísta tinham crescido e bizarramente se viam nas cidades e vilas do Arquipélago».
O grande micaelense que foi o Dr. Ernesto do Canto aponta já mesmo «para a criação, em S. Miguel, duma Academia destinada a fornecer, permanentemente, a instrução superior nas suas formas mais consentâneas às necessidades do nosso meio, de modo a impor às nossas classes dirigentes a orientação de ideias que os grandes centros de civilização lançam em cada dia à circulação; pelo que o problema da remodelação da educação não se podia resolver apenas com a pretendida difusão do Ensino Popular».
É ainda nesse ano de 1901 que a Junta Geral decide abrir concurso para a construção e exploração dum caminho de ferro nesta ilha, no seguimento duma proposta apresentada pelo Eng.º Kopke, cujo nome ostenta a via que conduzia o antigo Clube ao Molhe.
Paralelamente, publica‑se a nova lei da administração dos distritos insulares, com projecção para as Juntas Gerais, de modo a poderem apoiar toda a política económica e de desenvolvimento regional, a qual, com pequenas alterações, vigorou quase até à criação do Governo próprio dos Açores, por via do Estatuto Político‑Administrativo.
Regista‑se ainda neste ano de 1901 a entrada em vigor do recém‑publicado regulamento do porto de Ponta Delgada apontando para o facto de «os navios que navegarem à vela, a reboque ou à espia serem os responsáveis pelas avarias causadas àqueles que estiverem doravante ancorados ou amarrados».
No Teatro Micaelense inicia‑se a organização duma comissão com vista à fundação Século XX — Associação Promotora do Ensino Popular, destinada a acolher a juventude mais desprotegida.
Em linhas gerais, este era o ambiente político‑social de Ponta Delgada que rodeou a formação e as primeiras actividades desenvolvidas pelo Clube Naval, pois o estatuto veio a ser aprovado por alvará do Governador Civil de Ponta Delgada, de 3 de Junho de 1902, gozando a partir de então de todas as regalias e direitos conferidos na lei.
Regista‑se que a primeira grande manifestação já de vitalidade do Clube ocorreu por ocasião da Visita Régia, realizada em 5 de Julho de 1901.
Já então a sua recém‑formada Direcção foi encarregada de colaborar na recepção feita aos Reis, pois no “Diário dos Açores” do dia 4 diz‑se que «para a ponte do Sr. Clemente Joaquim da Costa eram distribuídos bilhetes verdes a cargo da Direcção do Clube Naval».
Coube igualmente ao Clube Naval promover o cortejo náutico que acompanhou o escaler real. E é igualmente o “Diário dos Açores” que anota na sua reportagem: «Saíram do porto 70 embarcações embandeiradas em arco e ornamentadas de verdura e flores. As embarcações ancoradas e todas as inúmeras que entraram no porto povoaram completamente as águas da bacia, produzindo uma das mais deslumbrantes vistas». E concluía «o escaler real veio desde o cruzador acompanhado por 4 botes cheios de crianças que atiravam flores durante o trajeto».
Em 1903, por iniciativa do Capitão do Porto, Comandante José Pacheco da Costa Salema, é criada uma Liga Naval, a qual agrupou muitos dos sócios do Clube Naval, deixando este, também, no dizer do investigador Dr. Hugo Moreira «num estado de hibernação de que só voltou a reativar-se no final da década de 20, com a prestigiosa figura de Alfredo da Câmara».
Alfredo da Câmara, que usou o título de Comodoro, foi sem dúvida uma das maiores figuras da implantação e sobrevivência deste Clube, imprimindo‑lhe uma dinâmica, sem paralelo, para o tempo, e que ainda hoje é recordada.
«O Sirius foi transformado, ficou com menos área vélica, e passou a ser um barco de instrução com grande qualidades. Havia três barcos absolutamente iguais (um na Horta, um em Angra e um cá) e foram construídos na América expressamente para a visita do Rei D. Carlos às ilhas, em 1901. A doca encheu-se de barcos e quatro botes com raparigas e rapazes atiravam flores para o mar, desde o cruzador (que, penso, se chamava Adamastor) que os trouxe, até à doca. Novamente o Clube Naval teve um papel importantíssimo, desde o seu início! Quando foi preciso reparar o Sirius, que era de tabuado liso e não imbricado, descobriu-se que o calafeto era feito de tiras de bronze. Sirius foi um nome posto já pelo Clube Naval e a todos os barcos vindouros se deu o nome de estrelas.»
Armando Rocha